domingo, 12 de julho de 2009

A Salvação pelo Rock (Resenha)

A Salvação pelo Rock: sobre a cena underground dos jovens evangélicos no Brasil
Esse artigo foi escrito pelo antropólogo Airton Luiz Jungblut e publicado na revista Religião e Sociedade (RJ, 2007). O autor inicia o texto falando sobre o crescimento acelerado do número de evangélicos no Brasil nas últimas duas décadas e associa esse fenômeno às transformações no modo de ser dos evangélicos. Em seguida, elenca uma série de fatores aos quais ele atribui a causa dessas transformações, quais sejam: a organização das igrejas em grupos cada vez maiores (os cultos espetaculares de massa), o que diminuiu a capacidade de imposição de regras comportamentais; a maior abrangência de segmentos da classe média que geralmente são pouco afeitos a doutrinas rígidas; a inserção das igrejas em novos espaços; a influência “destradicionalizante” das novas gerações e da própria dinâmica histórica do mundo. Assim, o que tem ocorrido é a apropriação de elementos profanos (mídia, internet, moda, determinados estilos musicais, etc) para fins evangelísticos. Destaca-se nessas transformações um movimento voltado para a juventude, destinado tanto aos jovens já convertidos, quanto aos que se pretende converter. Esse processo inclui a criação de espaços e abordagens mais condizentes com as áreas de interesse dos jovens dentro das igrejas.
Feita essa contextualização, o objetivo do autor é analisar os dilemas identitários que surgem nesse processo de apropriação de elementos profanos, especialmente o rock, estilo musical aparentemente inconciliável com fins evangelísticos, devido aos elementos estético-comportamentais que lhe são atribuídos (uso de drogas, sexo desregrado, signos satânicos...).
O rock gospel brasileiro começa a ganhar força na década de 80 e tem dupla finalidade: atingir os jovens ainda não convertidos e a destradicionalização das igrejas. Jungblut aqui, volta o foco para uma vertente específica do rock: o heavy metal, ou no caso gospel, o white metal ou metal cristão. Como esse ainda não é um estilo musical com grande aceitação entre os evangélicos, verifica-se a crescente criação de espaços (igrejas, ministérios, casas de shows...) dedicados aos seus adeptos. O conjunto desses espaços recebeu o nome de “cena underground cristã”. No Brasil, esses espaços se constituem refúgios para os jovens metaleiros que são impedidos de expressa sua fé nas igrejas tradicionais, devido aos seu comportamento pouco ou nada condizente com as doutrinas puritanas, afinal, apesar de todas as consideráveis mudanças pelas quais as igrejas evangélicas vem passando, o rock ainda não é bem visto nesse meio por ser associado a uma mundanidade não passível de apropriação para fins evangelísticos.
Assim, observa-se a criação de um movimento de defesa da não-malignidade do rock. Os defensores dessa causa partem do princípio que todo gênero musical pertence a Deus, mas o diabo se apropriou do rock, associando-o a práticas pecaminosas. “Não se trata, portanto, de apropriar-se de algo originalmente satânico para fins evangelísticos, mas sim de retomar algo que pertence a Deus, já que este seria o verdadeiro criador de todas as coisas. Nesta lógica, todas as coisas do mundo são neutras, podendo tanto ser usadas para benefício de Deus ou de Satanás” (pg. 149).
A missão desses jovens metaleiros cristãos no entanto, é bastante complexa: buscar nesse
gênero musical aquilo que pode (e deve) ser reapropriado, em detrimento dos elementos satânicos tão intimamente associados e ele, em um movimento simultâneo de incorporação (sonoridade, ritmo, técnicas musicais, referências estéticas) e recusa (linguagem inapropriada, uso de drogas, sexo desregrado, irreverência).
Em seguida, o autor faz um pequeno resgate da trajetória do ex-vocalista dos Raimundos, Rodolfo. Ele teve sua carreira iniciada nessa banda brasiliense que fez muito sucesso nos anos 90 com músicas que misturavam hardcore e forró. As letras continham palavões e referências explicitas ao sexo.
Em seu apogeu (2001), Rodolfo se converteu a uma igreja Pentecostal e deixou a banda. Em
seguida, Rodolfo formou a banda chamada Rodox e passou a testemunhar sobre sua conversão pelo Brasil. Ele abordava em seu testemunho a vida que tivera, onde abundavam sexo e drogas. Contudo, a nova banda não permaneceu por muito tempo, sendo desfeita em 2004 pelo fato de Rodolfo ser o único integrante evangélico. Para ele, os demais integrantes não de compromenteram com a sua proposta evangelizadora.
Por outro lado, a conversão de Rodolfo significou um grande ganho para o universo underground evangélico brasileiro porque tratava-se de uma figura admirada no mundo do rock mundano e que passava a prestigiar o universo underground evangélico tido por muitos como “careta” e “piegas”. Além disso, para os roqueiros evangélicos isso foi uma representação de que o seu universo tem atrativos suficientes para pessoas importantes do rock nacional.
Já no meio não-evangélico, também houve muitas manifestações contrárias a sua conversão, principalmente por meio da internet (em webforuns, em chats, em grupos de discussão, comunidades virtuais, etc.) reivindicando não só a volta dos Raimundos, mas também que Rodolfo deixasse de lado a sua postura evangélica.
As comunidades do orkut que reclamava a volta dos Raimundo tem como título “Rodolfo, volte pra drogas”, “Rodolfo, por favor volte pras drogas! Nem Deus te merece assim!”, entre outras.
A partir disso, passou a existir uma verdadeira guerra verbal entre os defensores dos Raimundos e os defensores do Rodolfo evangélico. Nesse embate, é colocada uma questão difícil de ser aceita pelos não-evangélicos, ou seja, a possibilidades de que o repertório de símbolos, padrões estéticos e comportamentais próprios do universo cultural underground, associados a certas modalidades do rock possam ser apropriados pelos evangélicos com uma finalidade distinta da finalidade “mundana”.
Para os evangélicos vinculados a essa cena underground basta adulterar os sinais internos aos símbolos manipulados existentes nesse jogo identitário. Assim, há uma transposição do pecaminoso para o virtuoso, de satânico para divino, de irresponsável para edificante, de lascivo para casto, de licencioso para abstêmico, etc. Porém, os não-evangélicos apostam que tal comportamento ocorre apenas para ocultação de uma pieguice evangélica.
Essa adulteração semântica é algo colocado como sendo de extrema complexidade, pois ao mesmo tempo em que os jovens evangélicos precisam estar alinhados com o repertório de onde retiram o material identitário, simultaneamente, devem ter um comportamento condizente com as crenças e os padrões de moralidade próprios ao cristianismo evangélico que frequentemente seguem padrões e valores completamente antagônicos aos daqueles que imitam.
Cotidianamente, dilemas e questões são vivenciadas pelos jovens evangélicos tais como: um jovem evangélico poder ou não falar palavrão, fazer ou não sexo antes do casamento, piercings e tatuagens aceitáveis ou não para um cristão evangélico, etc.
O autor ainda coloca, que de acordo com o caráter “antiestrutural” do universo underground juvenil contemporâneo é absolutamente natural colocar-se ideologicamente contra a ordem social e cultural estabelecida, alimentando a rebeldia, a irreverência, a falta de compromisso dos jovens com valores tradicionais e a legalidade institucionalizada na sociedade. Mas estar na chamada “contramão do sistema” é algo relativamente fácil para um garoto “mundano”, não para um roqueiro evangélico.
Como os jovens evangélicos não apresentam esse caráter “antiestrutural” com tanta tranqüilidade, são frequentemente taxados como “caretas”, “panacas” e “cuzão”, isto é, por ficarem distintos do que realmente caracteriza um garoto underground.
Durante os debates relacionados contracultura evangélica, está sempre presente uma tentativa do alcance do equilíbrio entre o permissível, em relação à mundanidade, e o desejável em relação à cultura evangélica.
Se por um lado existe a preocupação em não prejudicar a postura underground dos evangélicos em função dos tradicionalismos, por outro lado, se tem uma desqualificação da pretendida condição de autênticos undergrounds por alguns críticos ao movimento. Isso, leva a uma radicalidade de postura evangélica em relação a mundana, onde muitos jovens evangélicos afirmam: “contraculturais somos nós, pois somos odiados, desprezados e escarnecidos pelo mundo”.
Embora afirmem que eles são os que realmente tem um comportamento contracultural que vai de encontro à “decadência generalizada dessa sociedade moderna”, considerada consumista, materialista e hedonista, existem algumas ressalvas quanto a isso. O fato, por exemplo, de determinados jovens que se dizem adeptos desse movimento negar o sexo desregrado, o consumo de álcool e outras drogas, não os exime de práticas consumistas. Nesse caso, não estariam negando o consumo, por exemplo, e sim algumas formas de consumo tendo em vista que os jovens evangélicos também são fortes consumidores do mercado musical, dos esportes, da própria moda (style), etc.
De acordo com as Ciências Sociais, a categoria “juventude” abarca uma série de questões referentes às tensões, conflitos, divergências, desentendimentos geracionais etc. Esses transtornos levam os jovens a tornar-se objeto de estudos dos diversos campos do saber (Direito, Psicologia, Pedagogia, Sociologia, criminologia, etc.), cada um com um tipo de olhar.
A juventude tida como um “problema” inquietante é algo recente na cultura ocidental em virtude do nível de complexidade social atingida, tornando a fase de construção da identidade do jovem uma etapa desafiadora, dadas as múltiplas opções identitárias no percurso rumo a fase adulta.
Destaca-se que esse processo transitório dos jovens à fase adulta tende a ser dramático porque enfrentam crises importantes relacionadas às fases anteriores da infância, ao mesmo tempo em que desejam “instalar ídolos e ideais duradouros como guardiões de uma identidade final”.
Esses dilemas e conflitos podem ser vistos claramente quando tanto os jovens não-evangélicos como os evangélicos undergrounds, lutam intensamente pela contrastividade identitária em relação ao tradicional posto, seja na religião ou no que está legitimado socialmente.
Todavia, para os jovens evangélicos a contrastividade identitária é mais difícil em razão da ambigüidade existente entre dois grupos distintos: os evangélicos classificados como tradicionais e com que não compartilham padrões estéticos nem comportamentos, e os que habitam o universo underground “mundano”, cuja crença religiosa não é compartilhada.
Os jovens evangélicos, tem que mostrar que podem incorporar e manipular o repertório simbólico “mundano”, sem por isso, deixar de afirmar explicitamente sua confissão de fé. Isso significa dizer que os jovens evangélicos partilham de alguns gestos, roupas e gostos dos roqueiros “mundanos” ao mesmo tempo em que defendem valores morais e religiosos que os fazem cristãos.
O conceito de “comunidade estética” é fundamental para tentar-se compreender o formato organizacional assumido pelos pertencimentos estéticos em questão. Assim sendo, as comunidades estéticas seriam formadas mediante a identificação coletiva e compartilhada de valores estéticos de alguma ordem de produtos culturais. A presença dessas “comunidades estéticas” na sociedade contemporânea se dá em decorrência da “estetização da vida”, ou seja, uma busca incessante dos indivíduos por novas experiências, novos valores, novos vocabulários, etc.
A explosão do movimento Punk, a partir do final dos anos setenta aparece como um colaborador para a proliferação de comunidades estéticas no meio urbano. Ocorria então, um aumento de tribos que elegiam “a música como elemento centralizador de suas atividades e da elaboração de suas identidades”. Para isso, seria necessário um grande investimento na construção de um estilo de aparecimento (modo de vestir, expressão facial, postura de corpo e gesticulação).
Essa explosão de comunidades, possivelmente corroborou para a criação de um movimento underground evangélico com bandas de rock, estilos alternativos de música, comportamento, etc. O estilo de vida underground, antes pertencente a uma camada restrita da sociedade, popularizou-se.
A desradicalização política e estética do universo underground em função do inchaço apresentado por ele, proporcionou a entrada de “comunidades estéticas” nesse universo como: jovens pouco alternativos (skinreads, strainghtedges), os “punks de butique”, os emos e os evangélicos undergrounds. Logo, as tribos evangélicas de rock legitimam a sua entrada no mundo underground, assim como outras comunidades estéticas.
A partir desse quadro, são feitas indagações sobre o que realmente teria acontecido com o mundo underground. Chega-se a conclusão, de que teria havido simultaneamente o enfraquecimento do repertório simbólico nesse universo, possibilitando a entrada dos jovens evangélicos e ao mesmo tempo o enfraquecimento desse repertório simbólico underground pela entrada dos jovens evangélicos.
Dessa forma, o autor pontua que refletir sobre esse movimento, auxilia na compreensão desse processo de liberação de certas áreas aos evangélicos antes consideras mundanas strictu senso.
Desta feita, ressalta-se que os grupos identitários permitem a existência de um rock underground dentro das igrejas evangélicas brasileiras não como um movimento homogêneo, mas sim como um movimento que apresenta divergências não só entre eles, mas com as várias tribos, com os não-evangélicos e com os evangélicos como um todo. ‘Trata-se , talvez, daqueles recorrentes fluxos de convergências e divergências entre o geral e o particular que, de muitas formas, parecem caracterizar, há muito tempo, o crescimento e a ...fragmentação diferencialista da cristandade protestante” (pg.160).


*Jungblut, Luiz Airton. A salvação pelo Rock: sobre a "cena underground" dos jovens evangélicos no Brasil. Revista Religião e Sociedade, p. 144-162, Rio de Janeiro,2007.

Um comentário:

  1. Acho que esse rótulo que deram ao Rock, como sendo Satânico é puro preconceito.
    Acho que todos os ritmos tem o mesmo significado, eles variam apenas no gosto musical de cada um.
    Se um cara se diz rockeiro, não significa que se veste de preto, não toma banho e se droga ... apenas quer dizer que seu estilo musical é o Rock.

    É claro que o Rock, se formos generalizar, se tornou algo rebelde, composto por pessoas "loucas", que agem de forma incomum ... sem falar nos símbolos, personagens e letras das músicas.

    Mas se falarmos apenas musicalmente, o rock é um ritmo como qualquer outro. Portanto deveria ser permitido nas igrejas, desde de que não passe dos limites impostos por cada igreja.

    Junior

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